sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Ampulheta ( II )





Eu fiquei parada o tempo certo. O quanto-basta. O suficiente. Deixei sair o que não me acrescentava. O que não fazia falta. O que era veneno. E deitei-me na areia, brincando com ela e soprando cada grão.
Pensei que não vinhas. Pensei que nunca mais tivesses motivos para vir. Mas a vingança, com máscara de paixão, voou de ti até mim e fez-me procurar novamente essa ampulheta que eu já tinha deitado fora.
Peguei nela. Pedi permissão ao meu olhar, para que os meus olhos pudessem recomeçar a contar o tempo. Virei-a ao contrário e vi cair cada grão. As minhas mãos estavam maiores, tal como os meus sonhos e os meus desejos e, por isso, não eram o suficiente para deixar escorregar a areia, através delas.
À medida que caíam esses milimétricos cristais de várias tonalidades, pedacinhos de vidro rasgado infinitamente, como um dia aconteceu ao meu coração, uma fila de perguntas surgia em mim. Haveria outros desertos e outras caravelas em busca da verdade de nós? Haveria mais erros? Haveria ainda tempo, depois do tempo que essa ampulheta viciada deixava escapar? É que marcas, havia. É que vontades baralhadas, também. Havia destinos contrários. E a sensação do que não foi, mas poderia ter sido.
E tu sorriste. E eu soube que o teu sorriso era o beijo de Judas. Tu disseste e eu ouvi, mas não acreditei. “Quando quiseres, podes vir sempre”. E houve um dia (quase no limite em que a ampulheta findaria o seu papel) em que eu quis arriscar e fui. Mas tu não estavas. Tu não estavas e a tua ausência deixara uma mensagem, na areia molhada que fica à beira-mar. “EU DECIDI QUE TAMBÉM NÃO IRIA FICAR PARADO DURANTE MUITO TEMPO”.
Sorri. Debilmente. Dilacerada, mas forte ainda. Sem retirar o olhar da ampulheta, continuei a contar. Já era Mulher. Hoje sabia que o era. Por que razão ainda amar-te? Por que razão ainda acreditar em ti? E foi no momento em que o último grão de areia caiu, que eu vi a resposta, mesmo à frente dos meus olhos, que tinha usado para (re)contar o tempo. A verdade é composta de momentos e tu não passaste de um, na minha vida.
A felicidade não é mais do que o tempo marcado por uma ampulheta. É certo que as minhas mãos hoje são maiores e que um punhado de areia só me escoaria facilmente por entre os dedos, se estivesses. Mas, mesmo assim, há sempre uma ilusão que dura mais tempo!



[Imagem retirada da Internet]



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