sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Do outro lado





A porta está fechada. As janelas cerradas por cortinados espessos, que não deixam filtrar a luz. Há quem compreenda. Há quem faça por compreender. E há quem não esteja para aí virado. Eu estou. Preciso de saber porque é que temos dias assim, que parecem noite ou que ainda são mais escuros do que ela.
Há noites de luz. Tu sabes. Eu sei. Toda a gente sabe. Há noites de luz em que os sorrisos iluminam mais do que as estrelas. Mas hoje é o oposto o que se desenrola nas paredes que me cercam.
Portas fechadas, janelas trancadas. E a minha certeza de que, cá dentro, o abismo está perto.
De todas as vezes em que caí, levantei-me guerreira guiada por forças que ficam para lá do que o mundo crê e que vêm sabe-se lá de onde. Sempre me vi como a última gota do copo, a que resiste quase no momento-limite. Ninguém sabe que, acima da superfície, só consigo ser esta muralha de pedra, movida a tempestades e a dias que trocam com a noite.
E é tudo uma confusão nesta realidade que eu criei para mim. A verdadeira não me interessa. Tem demasiados ressaltos e demasiadas coisas más. Nunca me contentei com o dia, muito menos se ele não tiver luz. Sou filha da noite, mas de uma noite onde as estrelas iluminam e onde até eu mesma ilumino a lua com a minha luz.
Sei que me cercam aqui dentro. Dentro desta tal muralha. E sei que lá fora há claridade, sol e vida. Há alguém que me puxa. Que me tenta levar para o outro lado. Onde o dia e a noite aparecem e se desvanecem no tempo certo.
Mas esse alguém é como eu. Também ergueu uma muralha de pedra à sua volta. E também se encontra num impasse, quase tão grande como o meu...
Uma rajada de vento vem e sopra. Sopra com força e apanha-me desprevenida. Há quem chame a essa força Destino, mas eu não sei o que lhe chamar. Só sei que talvez tenha de lhe agradecer.
Quando olho para trás, vejo a porta aberta e constato que foi o seu sopro de fúria que a deixou assim. Como a ponte para o outro lado, fora da minha muralha de pedra.
Agora não tenho desculpa. Tenho tudo! Tenho a coragem, tenho os medos, tenho os receios. Tenho-me por completo, pois ninguém se pode dividir. E tenho esse alguém, de mão estendida, à espera que eu vá e a cubra com o calor da minha.
A porta está aberta e eu avanço. Não parece real. Não é! Há quem compreenda. Há quem faça por compreender. E há quem não esteja para aí virado. Eu estou. E não me importo.
Mesmo que tenha de me armar outra vez em heroína. Mesmo que volte a ser aquela guerreira, em que nem eu própria me reconheço, lutando contra tudo e todos, não me importo.
A porta está aberta e eu vou. Do outro lado, há alguém de mão estendida para mim. Mas não só! Do outro lado está quem eu quero ser. Um ser diferente. Que arrisca. Que não desiste. E que luta até ao fim. Ouvi por aí algures que o comum não nos atrai...






[Imagem retirada da Internet]



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sábado, 22 de outubro de 2022

Ampulheta





Eu decidi que não iria ficar parada durante muito tempo. O punhado de areia movediça e escorregadia que me fez tropeçar tantas vezes, escapa-me, grão a grão, por entre os dedos. Eu decidi que não iria ficar parada durante muito tempo. Só permaneci imóvel, num casulo de solidão, o tempo necessário para deitar abaixo as minhas muralhas de anseio e reerguê-las no templo da imensidão, onde essa areia não me escapa das mãos e onde se envolve e nos envolve, para lá daquilo a que ousamos chamar realidade.
Ampulheta que demarca a minha estrada de encontro à vida, perco em cada grão de areia caído, um pedaço dessa ingenuidade que me toldou o coração, mais tempo do que aquele que tenho agora para me refazer mulher.
Bati com a porta e deixei do outro lado as desilusões teimosas, que correram comigo por uma praia deserta de luz e povoada de estrelas e ilusão. Com elas, deixei sair todos os amores falhados, todos os amigos falaciosos e todos os inimigos sorridentes. E arrisquei, nessa fração reduzida de minutos que sobrava, cultivar ideais no meu templo, que ditassem as regras que eu decidi seguir, em simultâneo com a minha decisão de que não iria ficar parada durante muito tempo.
O mar secou e a areia evaporou-se. A ampulheta dividiu-se na dimensão sonho/realidade, dividindo-me também entre o que é certo e o que é errado. Hoje, tenho a opção de me tornar outra pessoa. Mais forte. Mais guerreira. Mais consciente de si própria e do que está à sua volta.
Porém, ainda humana. E com essa cláusula, ainda suscetível às gotas de veneno que ficaram desse mar que não secou por completo e que nunca secará.
Eu decidi que não iria ficar parada durante muito tempo. E esse tempo esgotou-se! Se algum dia voltar a ficar encurralada entre a espada e a parede, será para virar a ampulheta ao contrário e entender quanto tempo demorará uma alma a remendar-se do que resta de uma vida.






[Imagem retirada da Internet]



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sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Estrutura





É toda uma estrutura. O teu corpo, que tão depressa aquece como arrefece. Que te faz sentir que nada te abala ou que tudo não passa de meandros de fantasia, rasando o núcleo da realidade. É uma estrutura aquela forma geométrica que tem mãos, pernas e pés, que tem sangue quente a pulsar nas veias e uma pele gelada como se o habitat natural fosse o Pólo Norte ao invés das ruas de Lisboa, palmilhadas dia após dia.
É toda uma estrutura. Os minutos e os segundos do relógio controlados até à exaustão, enquanto os sentimentos ficam para segundas núpcias. O coração com as batidas rítmicas ignorado em prol dos passos planeados e executados sem nenhuma falha. Pelo menos, para os que veem. Porque dentro dessa estrutura - o teu corpo - tu sentes que falhaste e que o caos te revela que mais um passo em frente e despenhas-te no precipício, sem possibilidade de retorno. 
O teu corpo é uma estrutura ordenada por ti, preenchida com as regras que foste recolhendo, moldada pelos desejos dos outros e por aquilo que esperam que sejas. Limas as arestas até ficarem direitas. Endireitas a coluna, desatendendo que ela é torta por natureza e prossegues. Prossegues num caminho que ninguém sabe muito bem onde leva, mas sobre o qual todos teimam em opinar. 
E tu, movida pelas estruturas dos outros, que te sustêm e mantêm de pé, dás-lhes ouvidos, correndo mundo até os músculos do teu corpo latejarem, mesmo que não concordes com esse rol de vontades alheias. 
Estrutura. É esse o nome do teu corpo. É esse o nome do meu. Porque o teu corpo e o meu são o mesmo. Porque o nosso corpo é um só quando eu me olho ao espelho e vejo nele refletida a imagem da minha estrutura. 
Quando saio do banho, reorganizo as peças no sítio certo. E no espelho embaciado já não há lugar para o reflexo do meu corpo, embora eu saiba que ele está lá, atrás do véu de condensação. O vapor abre espaço e forma letras. E eu sei que, juntas, formam a definição dessa estrutura. A estrutura que é todo o meu corpo. 
E já não é um somente um corpo o que o espelho me devolve. Mas sim o seu significado. O significado dessa estrutura, que é mais do que um esqueleto com alguma carne, embora seja aquilo em que eu me tornei. O significado dessa estrutura, marcado no espelho: Sociedade.






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sexta-feira, 7 de outubro de 2022

"E pudesse eu pagar de outra forma"





Ouvi dizer que o nosso amor acaba amanhã. Ouvi dizer… Mas, também, ouço dizer tanta coisa nos dias que correm…
Ouvi dizer que as flores murchariam e a natureza morreria, porque o ser humano poluiu o meio ambiente, ofuscando a Mãe, de fumo, pedras e pó.
Como o nosso amor… Como o nosso amor se ofuscou pela banalidade que foi tomando conta das nossas vidas (a de cada um), tornando o que era comum nos extremos opostos que caracterizam as paixões do século XXI, que não duram nem vinte e quatro horas.
Mas vinte e quatro sobre vinte e quatro (tantas somas, que lhes perdi a conta) foram as horas. Foi o tempo em que uma noite (que se repetiu inúmeras vezes mas que eu prefiro lembrar singular, para tentar fazer com que não doa tanto o pensamento e o peito), debaixo de um céu brilhante, adornado por uma lua redonda, prometemos ver sempre mais além, do que a névoa de poluição que abarca a cidade e tolda as mentes dos pares da nossa geração.
Mentimos? Não sei.
Não sei, mas receio bem que sim…
De que servem as promessas, se agarramos as oportunidades para as quebrar?
Há quem diga que é para provar o gosto da liberdade. Mas, também, ouço dizer tanta coisa nos dias que correm…
Além disso, como fazê-lo? Como fazê-lo num mundo em que já começaram a retirar tudo, incluindo o ar para respirar?
Ouvi dizer que o nosso amor acaba amanhã. Mas não tive a noção.
Os meus ouvidos são surdos quando o som que lhes chega, não chega para me satisfazer.
Satisfaz-se, assim, a raiva. Raiva, por não ter tido a noção…
E como diz aquela música, E pudesse eu pagar de outra forma…
Mas não posso. E tal como ela, também o teu nome está escrito por toda a cidade.
Nos vidros embaciados dos carros.
No nevoeiro cerrado da avenida.
Nas tabuletas que indicam as possibilidades de escolha de um caminho.
E nas paredes do meu quarto.
A escuridão do meu mundo privado, que deixou de ser nosso e fez de mim carne, amor-mágoa e poesia…
Ouvi dizer que o nosso amor acaba amanhã. Não posso pagar de outra forma, por mais que queira.
Porque o amor, mesmo que acabe, deixa a sua doença sem cura. Elevada ao expoente da loucura, mais ou menos como retrata aquela música, que tocava em forma de banda sonora de um amor que tinha tudo para dar certo mas, tal como a humanidade e o que fizeram dela, deu errado.
As construções sustentam a cidade, mas o nosso amor é um arranha-céus em derrocada. Ouvi dizer que ele acaba amanhã.
Ouvi dizer… Mas ouço dizer tanta coisa, que já não sei no que acreditar.
E se houver outra forma de eu pagar por este fim, que me digam, já que dizem tanto, sem me explicar nada.






[Imagem retirada da Internet]



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