sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Mágoas e tradições





Na minha infância, todas as histórias começavam com um “Era uma vez…”. E não me refiro somente aos livros, que desde cedo sempre estiveram presentes nas estantes do meu quarto. Refiro-me também, e sobretudo, à minha vida. Embora nem todas elas tivessem um final feliz, há bocadinhos que marcam e permanecem, como uma doce e longínqua recordação. Todas as recordações trazem saudade. Às vezes, um tipo de saudade que dilacera o peito e deixa na boca um leve toque de mágoa, por aquilo que já passou e não volta mais. 
Sempre fui uma pessoa de tradições e costumes vincados. Gosto de festejar todas as datas especiais. Aniversários, Carnaval, Páscoa, Natal, S. Martinho… Todas as épocas têm um sabor único e são especiais à sua maneira. Contudo, o S. Martinho tem um cantinho de destaque no meu coração.
Sou filha e neta de gerações que deram importância e honra à família, aos amigos, em saborear a vida enquanto ela é isso mesmo: vida, com sangue quente, a correr no corpo - às vezes demasiado frio para custar a acreditar.
S. Martinho... O conceito da partilha entre corações quentes e puros. Habituei-me a, uma vez por ano, marcar no calendário o dia em que se assavam castanhas e, simultaneamente, no calor do mesmo fogo, se aqueciam as mãos. Cordas de guitarra que se dedilhavam, gargalhadas expelidas com emoção e almas aconchegadas por um caldo verde memorável no coração e mente de muitas pessoas, faziam parte do cenário que compunha esse dia. “Vem e traz um amigo, há sempre espaço para mais um”. “Vem e traz um saco de castanhas, juntas à minha carne e ao vinho do outro e fazemos a festa!”. Partilha. Emoção. Risos. Vida! Eram estes os ingredientes que punham a tradição em andamento... Fui criada assim! A saber aproveitar o tempo enquanto o temos, a festejar o facto de se estar vivo! Mesmo que por vezes o esqueça, sei que a raiz mora na base de quem sou.
Hoje, apesar da vida continuar a correr, impávida e serena, mesmo que os calendários tenham deixado de se substituir na minha parede (ver o tempo passar dói!), o S. Martinho continua a existir. E apesar de eu me ter apercebido que, hoje em dia também, a maioria já não festeja quase nada com o mesmo fulgor, sei que ainda há um grupo de pessoas que o fazem. A vida tem-se conjeturado com demasiadas provas no caminho, mas quando tudo acalmar tenho a certeza que quererei retomar a tradição.
Embora os rostos não sejam os mesmos – pelo menos não todos! Embora os presentes já tenham ido marcar presença noutro lugar (talvez distante mas mais seguro)... É na infância que somos mais felizes e, ao retomar a tradição, sei que retomarei também um pouco dessa felicidade. A felicidade que mora na minha mente e no meu coração, sob a forma de uma criança entusiasmada, com crenças a mais no futuro. O bom da memória é que ela tem cheiro, sabor, sensações. O que vivemos, já ninguém nos rouba. E vamos sempre a tempo. Basta estarmos vivos!





Este texto integra o meu livro:


Para encomendar um exemplar, envie um email para pimenta.nicp@gmail.com

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Ampulheta ( II )





Eu fiquei parada o tempo certo. O quanto-basta. O suficiente. Deixei sair o que não me acrescentava. O que não fazia falta. O que era veneno. E deitei-me na areia, brincando com ela e soprando cada grão.
Pensei que não vinhas. Pensei que nunca mais tivesses motivos para vir. Mas a vingança, com máscara de paixão, voou de ti até mim e fez-me procurar novamente essa ampulheta que eu já tinha deitado fora.
Peguei nela. Pedi permissão ao meu olhar, para que os meus olhos pudessem recomeçar a contar o tempo. Virei-a ao contrário e vi cair cada grão. As minhas mãos estavam maiores, tal como os meus sonhos e os meus desejos e, por isso, não eram o suficiente para deixar escorregar a areia, através delas.
À medida que caíam esses milimétricos cristais de várias tonalidades, pedacinhos de vidro rasgado infinitamente, como um dia aconteceu ao meu coração, uma fila de perguntas surgia em mim. Haveria outros desertos e outras caravelas em busca da verdade de nós? Haveria mais erros? Haveria ainda tempo, depois do tempo que essa ampulheta viciada deixava escapar? É que marcas, havia. É que vontades baralhadas, também. Havia destinos contrários. E a sensação do que não foi, mas poderia ter sido.
E tu sorriste. E eu soube que o teu sorriso era o beijo de Judas. Tu disseste e eu ouvi, mas não acreditei. “Quando quiseres, podes vir sempre”. E houve um dia (quase no limite em que a ampulheta findaria o seu papel) em que eu quis arriscar e fui. Mas tu não estavas. Tu não estavas e a tua ausência deixara uma mensagem, na areia molhada que fica à beira-mar. “EU DECIDI QUE TAMBÉM NÃO IRIA FICAR PARADO DURANTE MUITO TEMPO”.
Sorri. Debilmente. Dilacerada, mas forte ainda. Sem retirar o olhar da ampulheta, continuei a contar. Já era Mulher. Hoje sabia que o era. Por que razão ainda amar-te? Por que razão ainda acreditar em ti? E foi no momento em que o último grão de areia caiu, que eu vi a resposta, mesmo à frente dos meus olhos, que tinha usado para (re)contar o tempo. A verdade é composta de momentos e tu não passaste de um, na minha vida.
A felicidade não é mais do que o tempo marcado por uma ampulheta. É certo que as minhas mãos hoje são maiores e que um punhado de areia só me escoaria facilmente por entre os dedos, se estivesses. Mas, mesmo assim, há sempre uma ilusão que dura mais tempo!



[Imagem retirada da Internet]



Acompanhe-me no Instagram e no Facebook