sábado, 8 de março de 2025

Mulheres



Mulheres que inspiram outras mulheres cumprem a sua missão no mundo.
Desde criança que a condição de ser mulher me assusta e me fascina na mesma medida. 
Sempre fui muito precoce. Abordava alguns assuntos e interessava-me por outros que não eram próprios para a minha idade. Aos quatro anos, já sabia que existiam pelo menos quatro formas de morrer: doença, acidente, velhice e suicídio (que eu descrevia como “um tiro na cabeça”). Sempre tive uma imaginação muito fértil e inventava histórias atrás de histórias. A escrita, sempre presente, manifestava-se em mim, ainda antes de eu saber escrever. Rabiscava papel atrás de papel e criava vidas e enredos, uns com coisas próprias dos sonhos e outros com base assente na realidade. Uma vez, a minha mãe foi dar comigo a entrevistar o senhor Avelino, por causa da sua dívida à Segurança Social; esta, foi uma das primeiras histórias que criei.
Porque escrever é muito mais do que o ato em si. É libertar a mente, dar asas às ideias e à criatividade e fazê-lo, especialmente, com o coração. A minha tia Antónia, irmã da minha avó Isabel, nunca soube ler nem escrever, mas escreveu, ao longo da sua vida, inúmeros poemas. Dia após dia, ano após ano. Sabia-os todos de cor! E a inspiração e o dom estavam-lhe na massa do sangue. Às vezes cruzava-se com uma pessoa na rua e fazia-lhe imediatamente um poema. Quando nos ligava, por exemplo, pela altura do Natal, chamava-nos à vez ao telefone, para dizer uma quadra a cada um... 
Escrever é muito mais do que desenhar letras no papel. Escrever é falar para e com a nossa alma, primeiro para nós e depois diretamente para a alma dos outros. É muitas vezes a escrever que encontro as respostas que preciso.
A minha mãe nunca me escondeu nada. Ainda criança, soube que poderia falar abertamente com ela e perguntar-lhe o que quisesse. Sempre me disse a verdade, da forma e com as palavras adequadas à minha faixa etária. Sempre me tratou de igual para igual, como uma pessoa com “querer” e vontades próprias. E esse é um dos seus inúmeros exemplos que eu quero seguir. Tratar os meus filhos como pessoas individuais, atendendo aos seus quereres e necessidades e guiando-os o melhor que sei. Coincidência, ou não, foi ela que me transmitiu o dom. E os genes fazem o seu trabalho da maneira mais insólita! Há uns anos, andava eu a escrever o Diamante do Sul, quando ela me mostrou um dossier que estava no sótão de casa dos meus avós e onde permanecem encerradas inúmeras coisas que ela escreveu… Qual não é o meu espanto quando vejo frases muito parecidas a algumas que fazem parte de textos meus e que escrevi, acerca de assuntos semelhantes. A vida tem uma forma muito particular de demonstrar que ninguém pode negar as ligações humanas, as origens, as raízes, o sangue e o amor.
A insegurança sempre fez parte de mim. Muitas das vezes, quando tinha medo, era perto das minhas avós que me sentia segura. Os colos das avós têm um gosto especial, elas embalam-nos e prometem-nos coisas, mesmo sem falar. Mimam-nos, fazem-nos as vontades e, nesses gestos inatos e puros, achamos força para continuar. 
A minha avó Isabel, mãe da minha mãe, foi para mim um grande exemplo. Sobretudo o de como se deve encarar a vida com otimismo e com um sorriso no rosto, mesmo nas alturas mais difíceis. Dizia-me muitas vezes, entre outras coisas, claro, duas frases, que são também grandes verdades, e que recordo continuamente, apesar de nem sempre me ser tão fácil pô-las em prática: “Sorri para a vida, que ela sorri para ti” e “Tudo tem solução, menos a morte”. 
Tive desde muito cedo a minha avó Quitéria, mãe do meu pai, como arquétipo da bondade para com os outros. Ela foi a enfermeira do meu avô Pimenta, durante muitos anos. Quando ele ficou doente e não podia comer da mesma maneira, ela comprou uma máquina especial para lhe fazer sumos de fruta. Tinha sempre os medicamentos prontos e ordenados para lhe dar. Anulou-se muitas vezes, apenas para colocar o bem dele à frente do dela.
Há ainda a minha bisavó Margarida, que tive o prazer de ter na minha vida durante doze anos. E a minha bisavó Ana Rosa, que quase todos conheciam por “Avó Ana” e que eu conheço apenas por fotografias e pelas histórias que a minha mãe me conta. Admiro-as por terem sido quem foram, mas principalmente por terem sobrevivido à perda de filhos, à partida mais contranatura que a vida pode pregar. Como é que uma mãe continua a viver, depois da morte de um filho? Não sei e espero nunca vir a saber! O certo é que estas mulheres continuaram em frente e seguiram até a vida as levar para o lugar onde, espero, estejam finalmente em paz, reunidas com os filhos que perderam e com os que, entretanto, também partiram deste mundo.
Todas estas mulheres que descrevi até aqui foram (e são) referências para mim, sobretudo nos meus primeiros anos de vida. Em bebé, em menina, em mulher… em todos os estágios que até agora vivi, elas estiveram lá.
Apesar de saber que podia confiar em todas, foi com as minhas primas mais velhas que me senti verdadeiramente à vontade para questionar e perceber a condição que é ser mulher. 
Aos três anos, só queria um dia vir a ter um vestido de noiva como o da minha prima Sónia; tinha a certeza absoluta que algures no futuro me iria casar e viver um conto de fadas, como o dela. 
Por volta dos quatro ou cinco, senti-me super importante quando a minha madrinha me pintou os lábios com o batom do cieiro, ou como ela carinhosamente me dizia, "o batom das crianças". Ela levava-me a montes de sítios originais, fazíamos imensas actividades e programas que muitas crianças não fazem. Foi com ela que fui pela primeira vez ao cinema, que fiz pizza caseira e que andei de patins – com os patins da Barbie que ela me ofereceu. 
Um pouco mais tarde, os meus ídolos foram as minhas primas Raquel e Inês. Tentava copiá-las em tudo, ficava fascinada com o que me contavam das suas vidas e da forma como o faziam, confiando em mim que, ao pé delas, não passava de uma miúda. 
Ao longo do tempo, a minha prima Ana Margarida, mais velha do que eu apenas três anos, foi a companheira de muitos momentos, fazendo-me acreditar que a amizade pode ser duradora e que nela cabem todos os sonhos, apesar dos cortes que a vida nos faz. Ou talvez mesmo por causa disso, quando saramos as feridas e percebemos que por trás de todas as mágoas – que muitas vezes não são nossas – o sol ainda nascerá amanhã e há muito em comum por descobrir. 
Até aos doze anos fui filha única e via nas minhas primas uma espécie de irmãs mais velhas. Foram elas que me ensinaram muita coisa. Foi nelas que me revi e que delas extraí muitos exemplos. Elas nunca me fizeram sentir “a pequenina” ou “a mais nova”. Trataram-me sempre por igual, falavam comigo sobre tudo, desde moda, a escola, a rapazes e a amigas. 
Mais tarde, sei que também eu fui exemplo para as minhas primas mais novas – a Rafaela, a Marisa, a Ana Rita, a Madalena – e para a minha irmã. A minha prima Daniela disse-me há uns anos que tinha muito orgulho em mim. A Ana Isabel, que não é minha prima mas que eu considero como tal, porque a família de coração é tão ou mais importante do que a de sangue, também me revelou que vê em mim um modelo de mulher; lembro-me muito bem quando ela me confessou que me achou super inteligente porque lhe expliquei uma vez que a palavra “Verão” se escrevia “Verão” e não “Vrão”; precisamente pela mulher em que ela se está a tornar, é que a escolhi para madrinha do meu filho. Senti uma enorme responsabilidade quando a minha irmã, por volta dos três ou quatro anos, me disse: “Obrigada por seres minha irmã!”; nessa simples frase percebi que
 “agora eu também era um exemplo para alguém.
Ao longo da minha vida, tive muitas mulheres que me inspiraram e desejei, em alguma altura do caminho, ser como elas.
Porque, a cada dia, estamos sempre a aprender. Sei que, de uma maneira geral e convicções à parte, os homens têm a vida facilitada em relação às mulheres, sei que na nossa sociedade ainda é muito difícil – e, por vezes, cruel – ser mulher. Mas eu não troco por nada ser o que sou. Ser quem sou. Ser a mulher que sou.
Hoje, agradeço a todas as mulheres que me inspiram e inspiraram. Porque foram elas que em grande parte contribuíram para que eu chegasse até aqui. Para que percebesse que cada mulher é especial e que é o traço de individualidade que nos distingue o que nos torna exatamente assim: únicas e capazes de inspirar alguém.
Pequeninas ou grandes. Mais novas ou mais velhas. Da família de sangue ou da família de coração. Que conheço de vista ou que conheço mais a fundo. Amigas, vizinhas, mães, avós, tias, primas, irmãs… Que ainda estão ou que já partiram. Do norte, do centro, do sul ou das ilhas. Todas elas têm um lugar especial no meu coração.
A Nucha, a Isabel, a Quitéria, a Margarida, a Ana Rosa, a Antónia, a Celeste, a Sónia, a Inês, a Raquel, a Ana Margarida, as Marisas, a Rafaela, a Daniela, a Graciela, a Ana Isabel, a Sofia, a Palmira, a Cidália, a Vera, a Soraia, a Bruna, a Andreia, a Selma, a Manuela, a Natália, a Ana Mata, a Jesus, a Telma, a Rosa, a Ana Ferreira, a Paula Lourenço... Sei que apesar de enumerar apenas algumas, há muitas mais.
Não sei se elas sabem que, quase todas, de uma maneira ou de outra, tiveram um peso importante na minha vida e na minha formação enquanto mulher. 
As mulheres são os seres mais especiais que existem. São elas que geram a vida e dão vida à vida que eu conheço.

Nota: Este texto é um excerto do meu novo livro, O Vento Sabe Quem Eu Sou. Para adquirir um exemplar (da 2.ª edição), basta enviar um email para pimenta.nicp@gmail.com




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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Joaninha voa, voa...


 
Há uns dias, de manhã, quando acordei e me preparei para subir o estore da janela do quarto, deparei-me com uma joaninha entre a parede e o vidro. Caminhava cima abaixo, sem saber para onde ir, naquele mar sem fim que era a brancura da parede e a possibilidade de resvalar para aquele translúcido multicor, que era a extensão do vidro onde a claridade de mais um dia se refletia.
Corri a pegar no Simão ao colo, para que ele observasse o bichinho. Tinha a certeza que era a primeira vez que via aquele espécime, nos seus dez meses de idade.
Esta é uma das muitas dádivas de se ser pai ou mãe. Acompanhar um ser humano que está a descobrir o mundo, a ver e apreender, pela primeira vez, aquilo que para nós é banal e que, exatamente por isso, nos passa ao lado. A maneira como ele olhou para a joaninha, como observou com curiosidade e genuíno interesse o trajeto que ela teimava em fazer, trouxe-me a esperança renovada.
Cada dia na companhia do meu filho é assim. Mais um balde de água que enche o poço. A reserva que eu preciso para continuar, andar, viver, sem ser em piloto automático, sem ser "só porque sim".
No meu primeiro livro, o Diamante do Sul, escrevi que viver é fácil, nós é que complicamos. E cada vez estou mais convencida disso!
Desde esse dia, tenho-me obrigado a pensar positivo. A educar o pensamento, sempre que a mente quer rebelar-se e seguir a rota contrária, aquela que tantos anos, que dias a fio, tomou como certa.
Tenho, a pouco e pouco, trabalhado para chegar onde quero, para atingir os meus objetivos, mesmo que eles não sejam compreendidos por mais ninguém, além de mim. E, no fim de cada noite, quando deito a cabeça sobre a almofada e faço o balanço do dia, sinto orgulho em vez de angústia. Sinto paz (somente, paz!) por ter atingido mais um degrau nesta senda do amor-próprio.
Hoje, sem prever, enquanto imprimia uns documentos no meu escritório, olhei por reflexo para o chão e vi outra joaninha (a mesma, quem sabe?!). Sorri para o vazio. Sempre fui dada a superstições, sinais, significados por trás da banalidade de uma mera coincidência. Acredito que nada acontece por acaso e, mais uma vez, a vida trouxe-me essa confirmação.
À semelhança do que tinha feito no outro dia, peguei nela com cuidado, abri o vidro e atirei-a lá para fora, para o quintal.
Liberdade, era tudo o que ela precisava. E eu também...




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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

O poder da falha


 

Às vezes, falho. Porque eu não sou perfeita. Pois não?!
Isso daria imenso trabalho, teria de ser, inclusiva e efetivamente, trabalhado ao pormenor e demoraria uma vida (e outra, e mais outra, e outra ainda, se não tivéssemos apenas uma).
A perfeição não existe. É esta a frase corrida, que ouço correr, nos dias que correm (e nos que correram, porque da maneira como corre o tempo e a vida – esta única que temos – misturo passado e presente, sabendo de sobremaneira que o futuro também será uma inequívoca correria).
Mas, afinal, o que é a perfeição? Sabemos que ela não existe, mas quantas vezes largamos da boca a exclamação “Está perfeito!”, “É perfeito!” Quando um bebé nasce, “É perfeito!” Quando bebemos um vinho de excelente categoria, “É perfeito!” Quando acabamos de confecionar aquele prato complicado e provamos a primeira garfada, “Está perfeito!” Afinal, a perfeição existe ou não?
Aqui há uns anos, afirmava a pés juntos – e cheguei a escrevê-lo num outro texto – que a perfeição existe, sim, e leva tempo! Mas falar de tempo não vale a pena, porque perderíamos imenso, não chegando a nenhuma conclusão. Pelo menos, a uma conclusão que fosse válida para toda a gente, porque precisamente para toda a gente o significado de perfeição (e de tantas outras coisas, importantes e menos importantes) varia. Porque somos um todo, mas um todo diversificado e não poderá ser isso, também, apelidado de perfeito?
Às vezes, falho. Para não dizer que falho muito. A todo o instante. E que isso é normal. Que, talvez, seja mesmo perfeitamente normal.
A vida é uma coisa complexa. Ou então somos nós que complicamos aquilo que é simples. Que, por ser de facto tão simples, não conseguimos compreender ou aceitar de ânimo leve.
Afinal, a perfeição existe. E esta é uma afirmação! Não leva o “mas”, porque já não há indecisão. Pelo menos, enquanto escrevo estas palavras. Quando as for ler, quando for reler o texto inteiro, provavelmente questionar-me-ei um par de vezes, ou mais, se a perfeição existe, ou não.
A única certeza que continuo a ter é que falho. Talvez mais do que apenas “às vezes”. E é tão perfeito falhar... Porque só falhando é que conseguimos ter uma vida perfeita. Só falhando, é que se consegue ser perfeito. Talvez perfeito e imperfeito sejam sinónimos em vez de contrários. O zé-povinho não diz que os opostos se atraem?
Perfeitamente falhando, a cada dia que passa, posso respirar de alívio. Afinal, a perfeição existe. E, contrariamente ao que afirmei um dia, não leva tempo. Leva uma vida inteira. Uma vida inteira de falhanços, de recomeços, de quedas e vezes sem conta a levantar.
Hoje, respiro de alívio. É perfeito! Eu falho. E é por falhar que sou perfeita!






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segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Para onde o vento me levar



Quanto mais o tempo passa, mais eu me deixo guiar. Simplesmente ir, deslizar, voar, ao sabor do vento...
A decisão de escolher um caminho em detrimento de outro, passa por mim, obviamente. Alimenta-se das minhas vontades, nutre-se das lições que aprendi ao longo dos dias difíceis, dos desgostos que colecionei como uma caderneta de cromos e das verdades agridoces que me reforçaram, dando força, também, assim, ao conceito de Ser Mulher. Mas, por entre o sol que se escapa das nuvens nos dias cinzentos, pelos espaços que as gotas da chuva deixam entrever, está o vento que sopra e me guia, fazendo de mim sua amiga, sua cativa, sua refém.
Eu deixo que o vento me leve, que me tape os olhos às vontades alheias, às opiniões de escárnio, às línguas de maldizer e às frases cujas palavras ferem, em vez de apoiar. Porque de tudo isso, está o meu passado cheio. A transbordar, de tal forma, que eu não preciso de mais. Não há necessidade de receber a gota de água que faria transbordar a minha alma – uma alma que já chorou mais lágrimas do que aquelas que a minha paciência arranja paciência para contar.
Por isso, a partir de agora, e quanto mais o tempo passa, mais eu me deixo guiar. Simplesmente ir, deslizar, voar, ao sabor do vento...
Porque, por entre todas as conjugações existentes do verbo “Viver”, a mais importante é a do presente do indicativo. E o vento é o meu guia, faz-me viver o momento, empenhar-me em desfrutar dele e colecionar recordações bonitas e preciosas, em que cada detalhe que eu me disponho a apreciar é um tesouro a colar no álbum do meu ser. É nos pequenos detalhes que se encontram os maiores eventos da Vida. Desta palavra tão certeira, completa e única, pela qual, jamais, deveríamos passar com a sensação de estarmos incompletos.
E eu, para atingir a plenitude, para sentir o todo de quem sou, só preciso disto! De me deixar ir, de me saber guiada pelas mãos desse ancião tão pleno e poderoso.
Eu vou para onde o vento me levar. E, assim, sei que estou no caminho certo para a felicidade. Aquela que eu projetei para a minha Vida… *






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*A partir de fevereiro de 2025, a autora segue a escrita do novo acordo ortográfico (Acordo Ortográfico de 1990).

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Rumo à aventura





Tu querias a aventura, porque já nada do que tinhas te chegava. Eu queria a realidade do mundo, porque era somente nele que conseguia viver. Mas tu insistias que a aventura era o teu ideal. Querias descobrir lugares novos. Desejavas explorar o desconhecido e negavas, a cada instante, pisar o chão que toda a gente pisa. Ansiavas elevar-te, mas eu confessei-te que a única coisa que ansiava era ter-te perto.
Não ligaste. Voltaste a dizer-me que querias partir rumo à aventura, pois era ela que te enchia a alma. Entristeci. Sempre pensei que quem te enchia a alma era eu, como tu enchias a minha. Mas fingi não ligar, como tu também não ligaste à minha vontade da realidade.
Um dia, quando abri a porta, tu não estavas. Tinhas feito as malas e ido viajar pelo mundo inteiro. O meu peito apertou-se e uma dor aguda alojou-se em mim. Não consegui evitar esboçar um sorriso. Algo simples. Débil e fraco. Mas um sorriso. Uma linha curva ascendente, em redor dos meus lábios. Orgulhei-me de ti. Querias ser diferente. E valorizei-te por isso. Valorizei a tua coragem.
Há muita gente que gostava de ser como tu. Ter em si o desejo de salvar vidas e mudar o mundo, não basta. É preciso ter coragem para pegar nos sonhos e voar por aí. E de coragem tu sempre transbordaste. 
Não te pude condenar. Não era ninguém para o fazer. Nunca fui. Aquilo que eu fui, é aquilo que sempre serei. Mais uma a desejar apenas a realidade. A realidade de um beijo. A realidade de um abraço. A realidade de um momento. A realidade de um pedaço de pão na mesa, todos os dias e de uma réstia de coração, ainda que amolgado. Nos dias que correm, os sonhos já não nos dizem nada e a vida faz-nos abrir os olhos e exigir demais de todos nós.
Menos de ti. Tu és o diamante que brilha, no meio das pedras que compõem o chão. Aquele que nunca tiveste vontade de pisar. 
Um dia, quando abri a janela, vi um barco ao longe e soube que eras tu. Voltavas do desconhecido (agora já conhecido para ti) e trazias a alma cheia e as mãos gastas pelo tempo e suor do teu trabalho e da tua força. Estavas de passagem. Este país não é para ti. Nunca foi e não te alimenta o ego nem a boca.
O nosso olhar cruzou-se e reconheci nele tempos passados de glória, como estes recentes que marcaste com o teu corpo, no desbravar de um oceano. Deste-me um sorriso. Um que nunca tinha visto. Já não era um gesto simples e sonhador. Mas um peso oscilante de mágoa e ambição.
Percebi que essa tua expedição, com nome de aventura, te tinha tragado o destino com tudo aquilo a que ouso chamar realidade. O sentimento de medo. As saudades do outrora confortável. O cheiro da morte a chegar-te perto. 
Soube que me deste razão. Que agora sabias que por mais que sonhasses e que por mais aventura que te corresse nas veias, a realidade andava sempre à tua volta, a mostrar-te os pés assentes no chão. 
Mas tu nunca foste um alguém que para. Tu nunca foste outra coisa que não um sonhador aventureiro. E voltaste a partir. Voltaste a partir, porque este país não te enche a alma. Porque eu também não e, por isso, não sou razão suficiente para te fazer ficar. Partiste outra vez, porque ter os pés no chão é demasiado para ti e tu nunca quiseste ser igual a ninguém. Tu nunca quiseste pisar o chão que toda a gente pisa. 
Abriste as asas e voaste. Voaste rumo à aventura e eu compreendi. Compreendi e aceitei, por fim, de olhos postos na realidade, que tu tinhas asas e não pés assentes no chão e que, mesmo assim, isso não significava que não me amavas. Compreendi e aceitei. E compreendi também que quem tem asas, jamais pode pousar ao pé de alguém que não pode voar.






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sexta-feira, 21 de abril de 2023

Depois da esperança, só tu: Abril!





Onde estás? Quero falar contigo e pedir-te que voltes. Ou, se não puderes voltar, que apenas faças chegar a nós as marcas do que um dia foste. Hoje a esperança escasseia. Olhei à minha volta de manhã, quando saí à rua e vi a miséria e a decadência a espreitar de cada esquina. Num beco cruel da amargura, uma fila de gente, já vazia e mais perdida a cada dia que passa.
Onde estás? Não percebes que precisamos de ti, como esse povo que já se substituiu, mas que te continua a querer e a respeitar a cada dia, da mesma forma que eles um dia o fizeram? Onde estão todas as promessas de um futuro promissor? Onde estão essas vozes que marcaram a diferença, juntamente contigo e que batalharam para chegar, até onde já chegámos?
Onde estás, que foste embora e nunca mais voltaste? Há quem diga que ainda cá andas. Que ainda permaneces em cada bocado sombrio, que hoje compõe cada cidade do país. Há quem diga que é tudo uma questão de tempo (e talvez, também, de desespero) até voltar a haver outro como tu, que redobre as forças e que nos dê o que nós sabemos tão bem merecer.
Mas nós não queremos outro. Queremos-te a ti! Àquele que nos prometeu o mundo. Àquele, por quem os nossos antepassados lutaram tanto para conseguir fazer “O Rei”. Queremos ver-te hirto, de ideias vincadas, fixado nos padrões estipulados a quem ainda tem fé e acredita no seu berço debruado a ouro.
Não. Não me compreendas mal. Ninguém te culpa. Ninguém te julga. Tu estás velho. Estás cansado de ver definhar tudo aquilo que construíste. Mas mesmo assim, sou eu que te estou a pedir que não desistas. E peço-to em nome de todos aqueles que pensam como eu.
Achas que gostamos de te ver vergado, ano após ano, mais um bocadinho, por aqueles que não sabem reconhecer o teu valor? Achas que gostamos de te ver sob a forma de mil correntes de água suja e pobreza, que transformaram o nosso lugar de vivência em algo comum e indiferente, ao que um dia significaste?
Peço-te que voltes. Quero falar contigo. Quero explicar-te e quero que vejas com os teus próprios olhos, como estamos a cair no chão poeirento e pedregoso da dor, da miséria, da insensatez.
Sei que há por aí muita gente que está a perder o orgulho. Que o está a substituir por impotência, resignação e muitos outros sentimentos de quem está cansado e farto de lutar em vão. Mas não deixes que isso aconteça! Não nos deixes transformar este país no lugar dos habitantes oprimidos e vencidos por alguém que não sabe reconhecer quem és.
Onde estás? Volta! Dá-nos a esperança, se é que ela ainda existe. Mostra-nos o caminho. Envia-nos um sinal. Uma pétala desse cravo vermelho. Ou um simples laivo de revolução, que nos prometa que tudo isto vai mudar.
Onde estás, Abril? Onde estás, que pareces ter ido embora e ter abandonado quem um dia deu a vida por ti?






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sábado, 15 de abril de 2023

Rugas





Hoje percebi que não tenho medo de envelhecer. Não quer dizer que não vão existir dias – ou noites (porque as noites são sempre as melhores, as mais sinceras e as mais justas confidentes) – em que vá colocar, novamente, tudo em questão. 
Quando vi as primeiras rugas a aparecer em redor dos meus olhos, chorei, desesperei, quis desistir. Era (e sou!) demasiado nova para as ver chegar assim, precocemente, sem poder fazer nada…
Mas, depois de muito analisar, percebi que é o nosso caminho, que são os passos que damos, as pedras que somos capazes de contornar e, até mesmo, aquelas em que tropeçamos, o que nos marca a alma e a pele. 
Não são as rugas! Cada ruga deve ser motivo de orgulho. Se surgiu pela languidez da desilusão, se veio da maneira como ela se instala sem avisar, como vorazmente se apodera da nossa alma para a abanar e como depois nos vai consumindo nessa fórmula lânguida e melancólica, exatamente a pouco e pouco, pouco importa! Importa ainda menos se veio da dor, da dor física, intensa e cruel. Ou se veio apenas da passagem do tempo... Tudo o que nos acontece – sei-o agora e tenho-o aprofundado ao longo dos anos – tem um propósito. E se hoje, antes dos trinta, começo a ter algumas rugas, é porque também tenho marcas. E quem tem marcas, viveu. Porque cada traço vincado na pele é uma estrada, a estrada que percorremos, a bem ou a mal, e que junta um rasto de pegadas atrás de si, formando um trajeto possível para quem se cruza connosco.
O meu medo não é envelhecer. O meu medo é provocado pelo cansaço. Porque é o cansaço que nos extenua, que nos deita abaixo, que nos faz duvidar de nós. 
Por isso é que eu gosto tanto de escrever e divagar sobre as pausas... Sim, sobre as pausas que devem ser feitas enquanto ainda temos fôlego para isso.
Eu prefiro reconhecer a verdade e parar (ninguém tem de ser forte vinte e quatro horas por dia). Prefiro saber que é esta a verdade e prefiro parar. Mesmo que me digam que sou preguiçosa, mesmo que atirem o palpite de que não estou a fazer nada, eu tenho de fazer e sentir o que é melhor para mim!
Não há perigo maior, nem abismo mais escuro, do que perder a vontade de prosseguir (mas continuar a andar…), do que perder o gosto em sorrir (mas continuar a dar azo ao gesto, só para fingir que está tudo bem e calar os outros…), do que deixar de arriscar (pelo trabalho que isso vai dar…). Não há nada pior do que deixar de seguir, de viver e de aprender.
Tenho rugas. Estou a começar a tê-las e não me importo. Cada ruga é sinónimo de um caminho, de uma lição, de uma experiência que, juntamente com as outras todas, formam o livro da minha vida. As rugas, que também são linhas, servem para escrever. Escrever cada dia, cada página, marcá-la, tatuá-la com uma caneta de tinta permanente. Porque apagar um bocado da minha história, porque negar o avançar do que o tempo não levou e transporta consigo em direção ao futuro, é erradicar quem sou. 
E eu, nós, somos únicos. Cada ser humano é uno e tem um espaço só seu. Este é o meu! Com ou sem rugas. Mais velha e menos cansada. Ou ainda não assim tão velha, mas com o cansaço no limite. E o caminho é sempre em frente. Por mais que custe. Por mais que doa. Por mais que, por vezes, apeteça deitar tudo para trás das costas e partir. 
O amanhã já não me assusta. O que me assusta é o cansaço que tenho do mundo em que vivemos e que nos grita, sem saber, para deixarmos de ser quem somos, sabendo que cada um é como é e que é a diversidade o que nos torna especiais.