terça-feira, 19 de abril de 2022

"O Homem é uma máquina"





São nove da manhã. E a marcação cerrada dos ponteiros do relógio não dá ponto sem nó. Porque às nove da manhã todo um mundo repetitivo começa.
Os oníricos da carne, robôs da sociedade. Elegantes nas indumentárias, com cheiro a limpo e a manhã renovada, emanados na maneira assertiva de caminhar e na voz, monopolizada para o tom certo. Deselegantes, num mundo que precisa da mudança. A mudança encontrada nesses sonhos, no estado letárgico que as escassas horas da noite permitem entre os lençóis, que não querem ser deixados sós, quando o despertador toca.
Mas como cordeirinhos bem ordenados de um rebanho, lá vão. Seguem em fila indiana, deixando a quimera da noite nas horas altas. Porque a partir das nove, o cosmopolitismo comanda. “O Homem é uma máquina”.
Põem os sonhos de parte e avançam, porque é isso o que é esperado da parte deles. É isso o que está afixado invisivelmente num placard qualquer, algures na mesma cidade poeirenta de sempre, cinzenta, esbanjadora, que os faz esbanjarem também as vontades, guardando-as dentro da caixinha onde guardam o ordenado.
E às cinco da tarde, no horário de saída, este prolonga-se com as chamadas horas extra, que não somam nada – apenas subtraem tudo. O ir buscar os filhos à escola. O partilhar aquele prato especial, com o amor das suas vidas. A ida ao cinema, para descontrair e sentir que se está vivo.
Mas não faz mal. Não faz, porque os robôs da sociedade precisam de muito pouco. Uma sandes chega-lhes para calar o estômago. Uma promessa de amor eterno enviada através do WhatsApp basta-lhes, para saberem que ainda não estão solteiros. Uma foto dos filhos emoldurada, sob a secretária, lembra-lhes que o “vou ficar a trabalhar até mais tarde”, é todo por eles.
Oníricos da carne, não se apercebem que são também oníricos da própria vida e do que está à sua volta. Para a sociedade são apenas um número, mas para alguém, por vezes alguém de tão pouca idade que ainda não sabe dizer por palavras o que é o Amor, são a vida inteira.
“O Homem é uma máquina”, seja o que for que isso significa. “O Homem é uma máquina”, esquecendo-se que não é a máquina do tempo. Porque essa, só existe nas horas altas da noite, em que inconscientemente se permitem sonhar.






[Imagem retirada da Internet]



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quarta-feira, 13 de abril de 2022

Os meus fantasmas





Aos meus fantasmas, agradeço-lhes o tempo dispensado. Tudo o que vivi, serviu para aprender e tornar-me no que sou hoje. Sento-me na mesma mesa, igual a sempre, e sinto o sabor dos meus fantasmas na língua. De cada vez que escrevo, pronunciando as palavras em voz alta para lhes conferir ritmo e vividez, sei que estou um pouco mais perto do abismo.
Ironia? Não. Já não consigo acreditar numa consequência tão parca como essa. Porque as minhas consequências advieram dos meus fantasmas. E, a esses, eu agradeço-lhes com toda a pompa e circunstância por aquilo que me deram. Deram-me sempre, sim! O que foi mau, serviu como lição: não cometer o mesmo erro duas vezes (fingindo que não os cometi multiplissimamente só para me certificar de que um erro é sempre um erro…). O que foi bom, ditou-me a verdade e a certeza, permanecendo em mim sob a forma de memória.
Há dias em que os meus fantasmas me assaltam demais, extenuando-me até ao limite. Mas, em ocasiões calmas como hoje, gosto de me sentar na mesa onde por norma escrevo e dedicar-lhes uma vénia sentida. E nunca antes um assalto foi tão bom. Nunca antes um assalto foi tão certo, como aquele que os meus fantasmas me fazem.
Corrompem-me a alma, dissecam desde músculos a pensamentos, trazendo-me o que há muito tempo perdi a esperança de conseguir ter. Para os meus fantasmas, tenho um prato reservado na mesa onde como, um lugar de destaque para ouvirem as histórias que crio e uma almofada pronta a usar, ao lado da minha, quando na crença de que o dia está findo e eu estou cansada, decido dormir.
Olho à minha volta e reflito. No silêncio que me abate a casa, no vazio de pessoas que há, para além de mim, olho à minha volta e reflito no meu percurso até aqui. Fecho os olhos e sinto a presença. A presença dos meus fantasmas que, sem me tocarem, revelam num sussurro “não estás sozinha!”. E eu acredito, como acreditei em tudo aquilo que eles me deram, fosse escuridão ou luz para escrever e caminhar.
Por isso, aos meus fantasmas, eu agradeço-lhes o tempo dispensado. Quando era pequena, tinha medo do escuro, medo dos fantasmas remetidos a categoria de “seres de outro mundo”. Hoje, sei que eles existem mas que não fazem mal a ninguém. E eu sinto - sinto mesmo, de coração e razão encaixados um no outro - que tenho de lhes agradecer.
Aos meus fantasmas, faço-lhes uma vénia sentida. E ao curvar-me para dar azo ao gesto, sei que estou prestes a cair no abismo. Mas não me importo. Já perdi demasiado tempo a importar-me com demasiadas coisas. Mesmo que caia, não me importo. As quedas, os tombos, os fantasmas e eu, estamos todos no mesmo barco. E o fim da travessia será a história que nunca pensei em escrever.






[Imagem retirada da Internet]



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terça-feira, 5 de abril de 2022

Constelações





Tu gritaste que havia constelações no teu olhar que eu ainda não conhecia. Eu fui-me embora, convicta de que já sabia de cor todo o teu brilho. Somos pedaços de Céu, fragmentos de Estrelas, rastos de planetas onde existem novas formas de vida. Somos muito. 
Somos muito e não é esse o problema. Somos muito mas achamo-nos pouco. E é esse o cerne da questão. 
É esse o cerne da questão, que nos faz duvidar de que, desde que sonhemos e lutemos, conseguimos tudo!
Não quis ouvir os teus gritos e ousei virar as costas em busca de um novo caminho. Não quis ouvir os teus gritos que, no fundo, eram uma súplica ardente de alguém igual a mim, que ousou arriscar e vive intensamente a vida que a Vida nos deu. Virei-me, afastando-me, convicta de que já sabia tudo. 
Os teus defeitos. 
As minhas falhas. 
O reflexo dos teus gestos, espelhados nos meus olhos, fixados no teu sorriso, quando me disseste aquela frase, a frase que mudou tudo: “Gosto de ti, e agora?”.
Tu gritaste que ainda havia céu para desbravar, mas os meus pés estavam cansados de andar sempre no mesmo tipo de piso, querendo experimentar rumos desconhecidos.
Virei-me. Virei as costas e virei o jogo, colmatando aquela história. Um remate do último capítulo, que mostrava todas as luzes mágicas e acesas da cidade, quando a noite cai.
Eu fui-me embora, enquanto gritavas, implorando-me para ficar. Fui-me embora, convicta de que já sabia de cor o teu brilho.
Tola que fui. Ingénua que sou. A única certeza é a de que não sabemos nada. Até ao último suspiro. Até ao último sopro de vida, estamos sempre a apr(e)ender.






[Imagem retirada da Internet]



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