quarta-feira, 13 de abril de 2022

Os meus fantasmas





Aos meus fantasmas, agradeço-lhes o tempo dispensado. Tudo o que vivi, serviu para aprender e tornar-me no que sou hoje. Sento-me na mesma mesa, igual a sempre, e sinto o sabor dos meus fantasmas na língua. De cada vez que escrevo, pronunciando as palavras em voz alta para lhes conferir ritmo e vividez, sei que estou um pouco mais perto do abismo.
Ironia? Não. Já não consigo acreditar numa consequência tão parca como essa. Porque as minhas consequências advieram dos meus fantasmas. E, a esses, eu agradeço-lhes com toda a pompa e circunstância por aquilo que me deram. Deram-me sempre, sim! O que foi mau, serviu como lição: não cometer o mesmo erro duas vezes (fingindo que não os cometi multiplissimamente só para me certificar de que um erro é sempre um erro…). O que foi bom, ditou-me a verdade e a certeza, permanecendo em mim sob a forma de memória.
Há dias em que os meus fantasmas me assaltam demais, extenuando-me até ao limite. Mas, em ocasiões calmas como hoje, gosto de me sentar na mesa onde por norma escrevo e dedicar-lhes uma vénia sentida. E nunca antes um assalto foi tão bom. Nunca antes um assalto foi tão certo, como aquele que os meus fantasmas me fazem.
Corrompem-me a alma, dissecam desde músculos a pensamentos, trazendo-me o que há muito tempo perdi a esperança de conseguir ter. Para os meus fantasmas, tenho um prato reservado na mesa onde como, um lugar de destaque para ouvirem as histórias que crio e uma almofada pronta a usar, ao lado da minha, quando na crença de que o dia está findo e eu estou cansada, decido dormir.
Olho à minha volta e reflito. No silêncio que me abate a casa, no vazio de pessoas que há, para além de mim, olho à minha volta e reflito no meu percurso até aqui. Fecho os olhos e sinto a presença. A presença dos meus fantasmas que, sem me tocarem, revelam num sussurro “não estás sozinha!”. E eu acredito, como acreditei em tudo aquilo que eles me deram, fosse escuridão ou luz para escrever e caminhar.
Por isso, aos meus fantasmas, eu agradeço-lhes o tempo dispensado. Quando era pequena, tinha medo do escuro, medo dos fantasmas remetidos a categoria de “seres de outro mundo”. Hoje, sei que eles existem mas que não fazem mal a ninguém. E eu sinto - sinto mesmo, de coração e razão encaixados um no outro - que tenho de lhes agradecer.
Aos meus fantasmas, faço-lhes uma vénia sentida. E ao curvar-me para dar azo ao gesto, sei que estou prestes a cair no abismo. Mas não me importo. Já perdi demasiado tempo a importar-me com demasiadas coisas. Mesmo que caia, não me importo. As quedas, os tombos, os fantasmas e eu, estamos todos no mesmo barco. E o fim da travessia será a história que nunca pensei em escrever.






[Imagem retirada da Internet]



Este texto integra o meu livro:


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